Desde que recebi o convite para conhecer a Arábia Saudita fiquei receosa sobre como seria tratada no país por ser mulher. Extremamente patriarcal, o islamismo prevê em sua origem tratamentos diferentes para homens e mulheres. Na versão da religião adotada no país, o wahabismo, a coisa fica ainda mais tensa. A notícia boa é que muitas das leis que segregam ou diminuem os direitos da mulher na Arábia Saudita têm caído nos últimos anos, consequência de um país com uma população cada vez mais jovem (70% tem entre 18 e 35 anos!) e mais globalizada, com acesso à estudos em outros países e, claro, à poderosa ferramenta que é a internet.
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A mulher (ainda!) precisa de um guardião legal
De todas as diferenças entre gêneros no país, essa é a que mais me incomoda. Até hoje as mulheres precisam de um guardião legal para obter passaporte (ou seja, para poder sair do país, fazer intercâmbio) e para se casar. O guardião pode ser o pai, o marido, um irmão, tio… O importante é que seja homem. Essa regra cria situações muito complicadas, como a de uma mulher que conheci, por exemplo, que se casou com um primeiro cara “decente” que lhe apareceu porque seu pai conservador não permitia que ela tirasse passaporte. Dá pra imaginar uma situação dessas?
Mas a expectativa é que isso mude em breve. Ao menos a questão do passaporte. Elas têm motivo pra acreditar na mudança: nos últimos anos, já conquistaram o direito de abrir conta no banco e abrir negócios sem necessidade da aprovação de um guardião legal. Cada pequena conquista é celebrada por essas mulheres que, apesar de serem fiéis aos islã, estão questionando cada vez mais as interpretações patriarcais que foram dadas ao Alcorão.
A partir de julho, a mulher na Arábia Saudita poderá dirigir
Outro indício de que tempos melhores estão vindo é que a partir deste ano as mulheres sauditas poderão dirigir, finalmente. É uma mudança proposta pelo príncipe Mohammed bin Salman que tem como objetivo aumentar o senso de independência das mulheres ao mesmo tempo em que estimula a economia. Afinal de contas, it’s all about money, né não? Mulheres dirigindo significa mais carros vendidos, mais venda de combustível, mais mulheres trabalhando… Tem gente que diz até que vai melhorar o trânsito, já que vai ter menos motoristas pra lá e pra cá esperando suas “patroas”. E, claro, vai melhorar a imagem da Arábia Saudita frente outros países e potenciais parceiros comerciais. Seja qual for o motivo, estão todas muito felizes com a novidade.
As mulheres devem usar a abaya, obrigatoriamente
Já falei algumas vezes aqui no blog e no meu Instagram sobre a abaya, manto longo que mulheres devem usar em lugares públicos para cobrir os braços e pernas. Pense num assunto polêmico! Antes da minha viagem eu pensava exatamente o que você deve estar pensando: que a abaya é um grande símbolo da opressão às mulheres no país.
Depois de visitar a Arábia Saudita e conversar com muitas mulheres, mudei um pouco minha opinião. E percebi como diferenças culturais são difíceis de superar, e como é preciso se esforçar para não julgar outras culturas sob os olhos da sua. Juro pra vocês: 100% das mulheres com quem conversei disseram que usariam a abaya mesmo que não fosse obrigatória, pelo menos em situações formais ou em que fossem ter contato com pessoas de outros países.
Pra elas, o uso da abaya tem a ver com sua identidade e religião. Faz parte do que acreditam. E elas odeiam que isso seja visto como opressão, acham um desrespeito com sua religião e se sentem humilhadas. Imaginem só você ser julgada e receber olhares em qualquer lugar que vai apenas porque está seguindo as leis do islã? Eu consegui entender um pouco.
Ainda acho que o uso da abaya deveria ser opcional. E o mesmo vale pro hijab (pano que cobre os cabelos) e pra burca (quando cobrem tudo e deixam só os olhos à mostra). Hoje, a abaya é o único obrigatório por lei, porém um marido pode exigir que a mulher se cubra mais ainda. E, pelo que vi, é bastante comum. Ainda é um desafio pra mim entender e não julgar essas obrigatoriedades, mas me resta respeitar e deixar que elas mesmas falem sobre a realidade em que vivem.
Há espaços segregados para mulheres em restaurantes, aeroportos e até no avião
Estamos falando sobre um país extremamente conservador aqui, veja bem. Não é bem visto que mulheres tenham contato com homens que não sejam de sua família próxima, e os negócios são todos adaptados para isso. Até o Starbucks tem uma entrada para solteiros e outro para famílias, em que homens só podem entrar acompanhados de suas esposas.
No aeroporto, as mulheres têm uma fila separada para passar no raio-x e no detector de metais, onde todas as funcionárias são mulheres. No aeroporto de Al-‘Ula tinha até sala de embarque separada para mulheres, mas eu não fui pra lá e não me senti julgada por isso. Acho que eles simplesmente dão opção para que as mais religiosas possam ficar à vontade. Porque elas se incomodam, viu: todos os voos que fizemos dentro da Arábia Saudita tiveram um troca-troca de lugares chatíssimo para garantir que mulheres não fossem obrigadas a sentar-se do lado de um homem desconhecido. Mas isso foi algo que partiu delas, não da companhia aérea.
Outra diferença, e que afeta bastante as turistas, é que as áreas comuns do hotel também são segregadas. Geralmente há academia para homem e academia para mulher. Piscina para homem, piscina para mulher. Isso quando tem alguma coisa pra mulher, porque também acontece de existir estrutura apenas para os homens. Mas a tendência é que isso mude – inclusive, o hotel onde nos hospedamos em Riade (o Movenpick) estava construindo uma piscina para mulheres no rooftop do prédio.
Ainda há muita desigualdade – mas isso está mudando, e rápido
Enfim, chegamos à conclusão óbvia: ainda há muita desigualdade entre homens e mulheres na Arábia Saudita. Mas é inegável – e toda mulher saudita vai concordar – que isso tem mudado nos últimos anos, e rápido. Intercambistas que ficam dois ou três anos fora do país se dizem surpresas com as diferenças que encontram ao retornar. Mulheres trabalhando em lojas, abrindo negócios, daqui a pouco dirigindo. É incrível! Ouvi até relatos de que a mudança está ocorrendo rápido demais – e ainda é difícil convencer algumas mulheres de famílias mais conservadoras a trabalhar em empresas mistas, por exemplo. É uma transformação grande, e entendo que não seja fácil. Imagina você ouvir sua vida inteira que é errado interagir com homens, e de repente se ver numa situação dessas?
Eu espero que cada vez mais normas se tornem opcionais, cada vez mais mulheres se sintam indepentes e que mais leis sejam aprovadas – inclusive que protejam as mulheres de violência doméstica, outro grande problema que o país enfrenta. Acompanharei de perto essas mudanças e espero voltar à Arábia Saudita daqui alguns anos para ver um cenário ainda mais otimista do que deixei. In sha’ allah! (ou “se alá quiser”).